sábado, março 07, 2009

a porta

batem-me à porta, com um bater rouco
que mal oiço, devido à chuva que cai lá fora,
e bate, bate, bate no chão que se desfaz, oco,
à espera de brotar em flor toda uma nova flora.
batem novamente, e oiço-o, como da vez anterior,
mas desta vez acordo e olho a porta

uma voz vocifera grunhidos imperceptíveis,
mas o seu som ecoa pela água que cai,
por entre essas gotas molhadas e quase invisíveis
que molham tolos, inteligentes e gente demais.
- Quem é? pergunto, perscrutando resposta.
oiço de novo um murmúrio, e vou à porta

olho para o chão, e vejo a sombra entoada
por entre a noite lá de fora, ao luar, indefinida,
e parece-me que escorre, de tão molhada
um qualquer líquido de cor amarelecida.
talvez seja do tempo, mas que importa?
ah, talvez seja da luz que alumia a minha porta

volto a indagar por quem à minha porta bate
e oiço um soluço arrastado, quase mudo,
que me faz aguardar por meu intento, sem debate,
e ouvindo um outro soluço que conta tudo,
rodo a velha chave, ferrugenta e torta,
e vejo a figura que se estende, encostada à minha porta

subitamente, como se tudo parasse menos nós,
sinto-a desfalecer, caindo para dentro da estalagem
como, ao sabor da maré, voga uma casca de noz,
e a vida perde o seu brilho, procurando nova paragem.
olho-a, como quem contempla uma natureza morta,
e ali estava ela, jazia, prostrada à minha porta

o tempo perde o seu significado contínuo,
e a velocidade de meus actos não é a mesma
pois o tempo para reflexão faz-me sentir ambíguo
e dou comigo a pensar com a velocidade de uma lesma.
num ápice - ecoa uma voz - o silêncio que se corta
apenas pedindo, com uma voz suave, que se feche a porta

o frio aquece, com ajuda de uma lareira que crepita,
libertando luzes, sibilando ao sabor de suas vontades,
deixando nossos corpos quentes - e uma chaleira apita,
com água a fervilhar para aquecer o chá - e a matar saudades.
saio, num ápice, e apanho cidreira molhada da horta.
volto a entrar em casa, e ao entrar esqueço a porta.

misturo a erva - já seca - com a água a ferver
e faço chá para nos aquecer, o corpo e a alma,
e falamos daquilo que não conseguimos antever
e, já quentes e lestos das palavras, ganhamos uma nova calma.
cremos na palavra que ditamos e para onde nos transporta
pois as palavras aquecem o frio, que trespassa a esquecida porta

talvez sejam últimos instantes de palavras perdidas
e ainda que ínfimas e sem sentido para uns tantos
essas palavras ditas ao sabor do chá quente, jamais serão esquecidas
por quem as entoou, e por quem as ouviu em prantos.
esqueço por momentos as palavras e quem as aporta
para me chegar perto da "esquecida" e torná-la na "fechada" porta

tantas questões a colocar, tantas a responder e a solucionar,
umas com a força da razão, outras com o saber do coração,
mas todas elas diferentes e iguais com o mesmo intento subliminar:
perscrutar por entre a alma fria nos momentos quentes de solidão.
subimos para um quarto, para sentirmos como se comporta
o amor entre dois estranhos, sem sequer fechar a porta

e a noite acaba com o soar do sino, e o cantar de galo,
dando lugar à alvorada resplandecente que nos conduz
a dar as mãos, como duas crianças que recebem um regalo
e a quem a vida, para além de amar, também seduz.
e a felicidade é acaso do momento que se acerta
com a hora de deixar a, outrora fechada, porta aberta

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